Nesses trocentos anos vivendo no meio musical fiz muitas amizades; algumas fugazes, outras infelizmente perdidas (pelos mais variados motivos) e outras firmes, fortes e duradouras. Deste último tipo, tenho um puta orgulho em ter como quase irmão um cara de especial talento e inteligência que é o
Jean Kuperman. Nós nos conhecemos meio que por acaso em 97 ou 98, já nem lembro, e devido às múltiplas afinidades logo viramos “amigos de infância”.
Jean é músico, compositor e cantor, com talento muitíssimo superior à média e, desta forma, como tudo no
Brasil, praticamente quase que completamente (rsrs) desconhecido do público em geral. Ele começou a carreira como a maioria dos músicos, ensaiando interminavelmente com bandas e mais bandas, tocando sua guitarra, até encontrar seu próprio caminho e estilo. Estilo, aliás, eternamente camaleônico e evolutivo, inquieto como seu jeito de ser.
Um dia, conversando sobre a falta de oportunidades que o “mercado” musical oferece, contrastando com as infinitas possibilidades de divulgação e comunicação que existem hoje em dia, pensamos em montar um blog para ser mais uma “frente de trabalho”, para mostrar uns “algo a mais” que os limitados
MySpace,
Facebook e
Twitter não permitem.
Surgiu, então, dessa colaboração o Templo Sem Teto, que tem como objetivo mostrar aos poucos o que vai na cabeça desse artista (além da sua cabeleira...). Vamos mostrar passado/presente/futuro, não necessariamente nessa ordem, e todas as pirações que acharmos válidas compartilhar. Ainda estamos no começo, mas as ideias não param de fervilhar e posso garantir que muitas coisas ainda vêm por aí, inclusive a explanação do conceito do Paganismo Transcedental, que vem sendo o principal mote de tudo que o Jean tem feito ultimamente.
Sem mais blá-blá-blás introdutórios, deixo aqui a postagem mais recente que fizemos, cheia de referências. Só vai ficar faltando a opinião de vocês, caros amigos e freqüentadores desse espaço espacial...
Libertas Quae Sera Tamen
A ideia de gravar na rua é básica. De graça e rápido. A ideia de gravar sozinho é prática. Equipe de dois, mini intervenções urbanas.
Rodrigo Negrão - Uma câmera na mão.
Jean Kuperman - Um banquinho, um violão.
Destino: Arco do Teles. 21/04/2011 – Feriado de Tiradentes.
Parte 1 - Golem Libre - Chegamos por volta das 17hs e tínhamos no máximo uma hora de luz para filmar. Passamos a primeira música, escolhida pela companhia de um desses sujeitos misteriosos e mágicos que circulam por aí sem identidade, sem história. Espectros das nossas sombras que ninguém quer mesmo ver. Aquele pegava guimbas no chão e depois sentou para escrever (ou pintar, não se sabe). Fomos perceber o papel e caneta só quando assistimos a filmagem. Parecia também um velho catador de latas, pelo saco preto que levava junto.
O
golem é um ser mítico, presente no misticismo judaico e sabe-se lá onde mais anteriormente. A letra da música situa o golem na rua de um país tropical abençoado por deus e bonito por natureza, mas naturalmente escondido dos olhos de fora.
Fizemos dois takes da parte 1. O primeiro passando a música e mostrando nosso personagem silencioso e muito mais do que real. Numa jogada rápida, Negrão muda o foco para cima dele e se vê que está com um papel e uma caneta na mão. O segundo take aconteceu debaixo do arco. A acústica ficou fantástica e o cenário como se feito à mão. Reverb de jaula, Projac de rua. Demos uma espantadinha de leve nos passantes que acharam que estavam no zoológico, batendo fotos minha e do meu cúmplice mudo ao fundo. Simples, foi só virar a câmera pra eles. Esse filme foi o que mais me impactou. Fiquei pensando no sujeito que aparece comigo na cena solta no mundo.
Parte 2 - Civilidad – Uma parceria com
Donatinho. Vinda de um Mandrake dos sons, a melodia criada por ele se desdobra de formas diferentes e minimalistas. Toco essa música de dois jeitos. Ele costuma chamar essa em que apareço de costas de “versão gipsy durona”. A música faz parte do repertório do
Exu Mandrake, que continua em estado de criogenia, esperando a primavera chegar. Mas acabou não acontecendo uma boa gravação. Ficou só o registro cantando a canção enquanto explorava o lugar.
Parte 3 - Sambarábico – Escolhemos um mural que combinava com a música no mesmo beco onde tudo acontecia. Travessa do Comércio. E o comércio nunca mais foi o mesmo depois do domínio árabe da civilização médio oriental e redondezas. Desses mercadores vêm fantásticos desdobramentos que chegam até nós, afro-ameríndios, diretamente. Alguns até apontam para a maior revolta urbana escrava da história do Brasil. A
Revolta dos Malês. E que dá nome ao personagem: Exu Mustafa. São negros árabes, os
Mamelucos, que por saberem escrever e fazer contas, eram escravos de maior ascenção social. Foram eles que organizaram o movimento, como já disse Caetano, um belo espécime da tribo.
A gravação quase é interrompida por um grupo de pessoas que estava passando. Talvez tivessem ficados assustados e não sabiam como se comportar diante daquele mameluco maluco tocando violão para um outro maluco mameluco filmar. No final aparece o responsável pelo “Videokê Club Gente Boa” na sacada do sobrado onde funciona o videokê. Ele bate palmas e convida a gente para subir. As próximas duas partes são feitas lá dentro.
Parte 4 - As Rosas Não Falam – Fiz essa música saudoso dos meus amores que estão por aí, amando ou não. E esperançoso pelos amores que anunciam sua chegada triunfal. A lentidão do fim da tarde do lado de fora e o clima cigano deste samba maravilhoso do grande
Cartola, as imagens ao fundo, os símbolos, a bandeira do Brasil, a máscara africana no final, tudo é recheado de hipertextos astrais.
Parte 5 - Oráculo – Tínhamos algumas opções ainda e o tempo era curto. Escolhemos uma música profética que anuncia os tempos do messias pagão. O paganismo transcendental, que sugere
Fernando Pessoa nos anos 20 do século passado, como sendo a religião do futuro, parece encontrar eco por aqui. Cito "
Mambembe" de
Chico Buarque e "
Zumbi" de
Jorge Ben Jor. Talvez seja acusado por plágio, talvez não, porque na natureza nada se cria, tudo se amplia.
Gravamos na sacada do sobrado inspirado em duas meninas que me assistiam de baixo. Parecia uma serenata ao avesso, onde o mulambo na janela canta para as princesinhas na rua. Quem iria imaginar.
Burguesinha, burguesinha… Diz aí,
Seu Jorge!
Parte 6 - Sabra – Depois de beber uma cerveja rápida no videokê, ainda fizemos uma música em frente ao
Paço Imperial. E aí já inspirados também pela chegada da noite.
Sabras são homens e, principalmente, mulheres da região da Palestina, mas que os israelenses acabam por levar o termo depois de estabelecido o Estado de Israel. São mulheres muito fortes afetivamente, encantadoras justamente por isso. Talvez resgatem o papel delas no matriarcado e inaugurem, em tempos modernos, os germes do feminismo. Uma vez que são basicamente imigrantes européias reconquistando a terra prometida com a cabeça da modernidade no comando, onde assumem papel determinante na tática de assentamento da terra. Isso me conta, entre gargalhadas, o mestre
Jorge Mautner, em quem, na verdade, a letra é inspirada por, ambos, termos conhecido sabras diferentes e nos divertido com as semelhanças.
A gravação parece entrar numa onda hipnótica aos poucos com aquele cenário urbano e a parede exterior do Paço, que parece uma grande prisão. A luz do fim da tarde, as lâmpadas e os halos de cor que vão se misturando e embaçando a vista, a perspectiva que vai mudando, tudo misturado em efeitos especiais analógicos e energéticos. Auras do fim do dia. A liberdade estava consumada.
Libertas Quae Sera Tamen!